Um panfleto contra Napoleão II, publicado em 1864, foi plagiado na Rússia no começo do século XX e tem alimentado até hoje o sentimento antisemita no mundo inteiro.
Texto de Bira Câmara
O que aconteceu com a obra de Maurice Joly (1829-1878) é um caso único em toda a história da literatura. Sua obra Diálogo no Inferno, uma peça de ficção, acabou eclipsada por um plágio grotesco, Os Protocolos dos Sábios de Sião, que se tornou mais conhecido que a peça original e se faz passar até hoje por um documento real.Publicado em 1864, em pleno Segundo Império, quando a França era governada pelo déspota Napoleão III, o livro é uma crítica mordaz aos regimes tirânicos e ao mesmo tempo faz a defesa das doutrinas liberais e republicanas. Joly põe em cena Montesquieu – que representa a política do direito – dialogando no inferno com Machiavel – que seria o próprio Napoleão III e sua “abominável política”.
Inimigo do regime e feroz opositor de Napoleão, Joly teve de exilar-se e publicou seu livro na Bélgica. A obra entrou na França de contrabando para ser distribuída clandestinamente, mas não chegou a circular, confiscada pela polícia. O autor foi deportado de volta para a França, processado e condenado a 15 meses de prisão.
Espirituoso, mordaz, com um senso crítico aguçado, Joly não levou sorte na vida; fez muitos inimigos e acabou suicidando-se em 1878.
Enquanto pouca gente ouviu falar no Diálogo no Inferno, Os Protocolos – obra montada a partir dela – é um dos livros mais lidos e procurados nos sebos, tanto por gente educada como por leitores despreparados.
Muitos acreditam piamente na existência de um suposto colégio secreto de sábios, empenhado em trabalhar pela dominação judaica mundial.
Antes de sair com o título de Protocolos dos Sábios de Sião, esse livro teve muitas versões na Rússia tzarista, entre 1903 e 1907: a primeira, ligeiramente abreviada, foi publicada em São Petersburgo no jornal Znania (A Bandeira), dirigido por um antisemita notório – P. A. Krouchevan – que havia fomentado um progrom na Bessarábia, durante o qual morreram 45 judeus, mais de 400 foram feridos e 1.300 casas e lojas de judeus foram destruídas; logo depois saiu em forma de livro com o título de Programa de Dominação Mundial dos Judeus; dois anos depois reapareceu em brochura, numa versão mais completa, intitulado A Origem de nossos males (1905).
Seus editores, G. V. Boutmi e P. A. Krouchevan, participaram ativamente da fundação de uma organização de extrema direita que armava seus membros para assassinar socialistas e liberais, além de massacrar judeus. Em 1906 reeditaram A Origem de nossos males sob o título de Os Inimigos da Raça Humana e o subtítulo: “Protocolos provenientes dos arquivos secretos da Chancelaria Central de Sião (que é a fonte das desordens atuais na Europa em geral e na Rússia em particular)”. Enquanto as edições anteriores apareceram sob a chancela da Guarda Imperial, essa foi creditada a uma sociedade de surdos-mudos. Quatro outras edições dessa versão saíram em São Petersburgo nos anos seguintes; em 1906 saiu mais uma, intitulada Extratos dos Protocolos dos Francos-Maçons.
A origem da fraude
Os editores dos Protocolos deram muitas explicações, mas pouco convincentes, sobre como tiveram acesso ao suposto documento. Não demorou para que a fraude fosse descoberta e denunciada pelo jornal inglês Times, de Londres. Inicialmente, como tanta gente culta e racional, o jornal acreditou na veracidade dos Protocolos e chegou a afirmar em editorial: “se tudo o que foi escrito pelos sábios de Sião for verdade, então todos os crimes e perseguições contra os judeus estão justificados, são urgentes e necessários”. Mas, um ano mais tarde, em editorial, o jornal se arrepende e reconhece ter se enganado: seu correspondente em Constantinopla, Philip Graves, revela que Os Protocolos foram copiados em grande parte de um panfleto apócrifo contra Napoleão III, publicado em 1865. Ele enviou esse livro ao jornal e recomendou que o lessem e fizessem a comparação com aquele. Ficou evidente, então, que Os Protocolos não passavam de uma paráfrase dessa obra...
O livro chegou às mãos de Philip, por intermédio de um grande proprietário de terras russo, de religião cristã ortodoxa e monarquista, refugiado na Turquia após a derrota definitiva dos russos brancos, que se opunham ao regime bolchevique. Ele comprara um lote de livros de um antigo oficial da polícia secreta do Tzar, a Okhrana, do qual fazia parte a edição original de O Diálogo no Inferno, obra que caíra completamente no esquecimento. Na capa do livro havia apenas o nome JOLI, desconhecido na época. O plágio não foi descoberto imediatamente porque era uma obra rara e anônima; haviam escapado poucos exemplares do confisco da polícia, quando foram contrabandeados para a França.
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Maurice Joly |
O livro de Joly é um ataque velado contra o despotismo de Napoleão III, sob a forma de uma série de 25 diálogos, mas caiu no esquecimento devido à proibição e ao confisco. Toda a carreira literária do autor foi marcada pelo mesmo azar. Merecia uma sorte melhor, pois era mais do que um bom escritor: anteviu com rara perspicácia as forças que, após a sua morte, desencadeariam os cataclismos políticos do século vinte. Escreveu também um romance, Les Affamés (“Os Esfomeados”), que demonstra notável percepção das tensões que, no mundo moderno, provocam os movimentos revolucionários, tanto de direita quanto de esquerda. Suas reflexões sobre o aprendiz de déspota Napoleão III, aplicam-se também aos regimes totalitários dos nossos dias.
Henri Rollin observa que “a obra de Maurice Joly é certamente o melhor manual já escrito para uso dos ditadores modernos ou daqueles que sonham se tornar ditadores no futuro.” Algumas intuições de Joly sobreviveram à transformação do Diálogo no Inferno n’Os Protocolos dos Sábios de Sião, de onde vem o caráter premonitório dos Protocolos, que parecem anunciar o totalitarismo do século vinte.
Ao escrever sobre Joly, Norman Cohn lamenta sua triste imortalidade e a cruel ironia de sua obra: “uma brilhante apologia do liberalismo tirada do esquecimento para fornecer a trama de um tecido de insanidades reacionárias”. Ao mesmo tempo reconhece que é uma obra admirável em todos os pontos, incisiva, implacavelmente lógica e construída de uma maneira soberba. Montesquieu e Machiavel discutem os méritos do liberalismo e do despotismo no mundo moderno. É Machiavel que discursa a favor do despotismo e são suas as opiniões que o autor da fraude atribui ao misterioso e anônimo Sábio de Sião, mas com notáveis diferenças. Enquanto Machiavel (que representa Napoleão III) descreve uma situação de fato, um regime já estabelecido, nos Protocolos esta descrição se torna uma profecia, uma visão do futuro.
O plágio parece “um amálgama fabricado às pressas por um imbecil”, nas palavras de Cohn. O Diálogo no Inferno faz uma distinção muito clara entre a política de Napoleão III para conquistar o poder, e aquela que ele pratica depois que o seu poder está solidamente estabelecido. Os Protocolos ignoram tais nuances e procuram dar a entender que os Sábios já detém o poder absoluto. Além disso, atacam as doutrinas liberais e fazem a apologia da ordem aristocrática e monárquica, revelando os verdadeiros motivos e a natureza da fraude.
Mesmo depois de revelado o plágio, continuaram a circular edições dos Protocolos no mundo inteiro, a maioria delas financiadas por partidos ou organizações de extrema direita, que sempre procuram alimentar o sentimento antissemita. No Brasil, a edição mais conhecida e procurada é a traduzida e comentada por Gustavo Barroso, lançada em 1936. A ligação desse autor com o integralismo e com o setor ultraconservador da Igreja é notório e dispensa comentários. Ele se acreditava imbuido da missão de defender a civilização cristã contra o “perigo judeu”, contra os maçons, os livre pensadores, os ateus, os socialistas e os protestantes...
Quando o plágio foi revelado, os “crentes” dos Protocolos tentaram desmentí-lo, alegando uma suposta origem semítica de Joly (o que não é verdade) e sua filiação à maçonaria. Chegaram mesmo a alegar que, como maçon, Joly teria exposto em seu livro o ideário maçônico e os planos da “dominação mundial pelos judeus”. Seria cômico se não fosse trágico: uma obra de ficção tomada como documento real! Para um escritor, isso seria a consagração máxima de seu talento, se o engôdo não estivesse a serviço de uma causa tão abjeta...
BIBLIOGRAFIA:
Maurice Joly, Dialogue aux Enfers entre Machiavel et Montesquieu, suivi de Polémique autour d’un plagiat, Un méconnu: Maurice Joly, de Henri Rollin, e Les Protocoles et les Dialogues, de Norman Cohn, Editions Allia, 1987.
Os Protocolos dos Sábios de Sião, Texto completo e apostilado por Gustavo Barroso, Revisão Ed., 1991
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