Sinal dos tempos
Texto de Bira Câmara
Muita gente superestima meu conhecimento sobre bibliofilia, razão pela qual me sinto na obrigação de deixar claro que não sou um bibliófilo na pura acepção da palavra. Nem mesmo tenho a ousadia de me considerar um “aprendiz de bibliófilo”, pois estou bem longe disso. O conhecimento que tenho do assunto se deve em grande parte às conversas com donos de sebos, vendedores e colecionadores. Desde que passei a fazer o Jornal do Bibliófilo, aprendi muita coisa do fascinante universo dos livros.Ao conversar com quem é do ramo, perguntando sobre determinada obra, sempre acabo descobrindo outras que ignorava. Isso aconteceu num dos últimos bate-papos com Seu Luiz da Ornabi, como sempre a respeito de livros e escritores. De repente ele puxou da estante uma obra com um título curioso: A Próxima Queda da Inglaterra pelas Profecias de Nostradamus, Bandarra e Gabriel Salazar, de 1940 (Ed. Moraes). Nas mãos de qualquer livreiro, seria apenas uma obra curiosa, sem valor, que caiu no ostracismo pelo fiasco de uma profecia não cumprida (como a quase totalidade das de Nostradamus, cujos fãs distorcem a seu bel prazer para fazer sentido). Mas Seu Luiz conheceu não só o seu autor, como também a história de como a obra foi escrita, impressa e lançada... O escritor, Gabriel Salazar, usou a numerologia para predizer a capitulação dos ingleses aos nazistas que, como todo mundo sabe, nunca aconteceu.
Quando o livro chegou à livraria, o livreiro decidiu expor um lote da obra no lado de fora de sua loja, fazendo pilhas de quatro em quatro volumes amarrados com barbante. Com esta exposição, ele achava que os livros seriam vendidos rapidamente, dado o sensacionalismo do título e a atualidade do assunto. O mundo todo aguardava a qualquer instante a notícia da queda da Inglaterra. Mas o público ignorou solenemente o livro e nenhum exemplar foi vendido.
Alguns dias depois, o autor passou na livraria e ao ver as pilhas de livros na calçada teve uma crise de histeria. Entrou na loja e discutiu asperamente com o livreiro-editor, acusando-o de ter destruído sua obra. O motivo, segundo Salazar, era numerológico: as pilhas não podiam ter sido organizadas em lotes de quatro exemplares, pois o número quatro é nefasto... A edição encalhou, virou pasta de papel, mas Seu Luiz conservou até hoje o exemplar que ganhou do autor. Um detalhe interessante desta história é que Gabriel Salazar era o pseudônimo de Savério Fittipaldi, tio de Émerson Fittipaldi.
Me desculpem a incredulidade, mas acho que o livro encalhou por outras razões. Naquela época, o público leitor tinha um grau de educação e cultura muito superior ao de nossa época. Uma obra deste gênero atualmente vende como água, mesmo que suas predições fracassem. Haja visto o sucesso de almanaques astrológicos e brochuras sobre Nostradamus e similares.
Prefiro tirar dessa história uma triste constatação: o leitor de hoje, produto de um sistema educacional degradado, vítima do bombardeio maciço da mídia com suas futilidades e bobagens, acaba consumindo toda esta literatura escatológica que as editoras despejam nas livrarias, em detrimento das obras de qualidade. Sinal dos tempos, apenas isso.
Publicado no Jornal do Bibliófilo, edição Nº 7 • Julho de 2006
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