BIBLIOFILIA - V

 A alma feminina, Seu Luiz & Cervantes

Texto de Bira Câmara

A incompatibilidade entre a mania de colecionar livros e a harmonia da vida conjugal é bem conhecida
e tem um anedo­tário abundante no universo dos biblió­filos. Tenho observado com frequência que a mulher perdoa muitos vícios do marido mas costuma ser implacável com o vício dos livros, a bibliofilia. Tolera-lhe o cigarro, o álcool moderadamente, o jogo e até uma amante, quando lhe convém. Talvez porque saiba que um dia ele vai enjoar da amante, mas jamais deixará de ter prazer com os livros. Esta idéia parece insuportável para a maio­ria das mulheres, ou pelo menos para as mais ignorantes. Que o homem possa sentir mais prazer na companhia de um monte de papel que na companhia delas é algo que não admitem. Conheci um velho colecionador que foi casado três vezes e teve sérios problemas conjugais com todas as ex-mulheres, por causa de sua mania de montar biblio­tecas. Aliás, perdeu uma ou duas nas separações. Mas pra quê perder tempo tentando explicar as idiossin­crasias da alma feminina? A bibliofilia é uma rival odiada e ponto final. 

Já ouvi muitas histórias sobre esse assunto, mas poucas tão boas quanto a que me foi contada pelo Seu Luiz da Ornabi, da última vez que conversamos. 

Um cliente e amigo seu, já falecido, estava terminantemente proibido pela esposa de entrar em casa com um único livro que fosse debaixo do braço. Sua mulher já havia até acenado com separação, se conti­nuas­se a gastar dinheiro com livros e a atopetar sua biblioteca com coisas que nem tinha tempo pra ler!

O pobre homem teve de se privar deste prazer para manter a paz no casamento. Mas um dia, ao passar na porta de uma livraria, deu com os olhos numa magnífica reedição de Cervantes, em dois volumes, ilustrada por Doré e não resistiu: comprou-a. A caminho de casa foi arquitetando uma história para convencer a mulher a deixá-lo entrar com os livros. Sentado, na estação do metrô, teve a brilhante idéia de escrever uma dedicatória do autor para ele, tomando o cuidado de disfarçar a própria letra. 

Ao chegar em casa, a mulher esperava-o na soleira da porta com cara de poucos amigos. Mas, sem dar tempo para que ela começasse uma briga, foi logo abrindo o livro e mostrando a dedicatória, com a data daquele dia: 

– Meu bem, veja só que coincidência: ia passando na porta de uma livraria quando vi, lá no fundo, meu amigo de infância, o Miguel, autografando sua obra. Fazia anos que não o via! Tive que ir lá dar-lhe um abraço e comprar o livro para prestigiá-lo. Olha que bela dedicatória ele me fez! 

A mulher, que não entendia nada de livros nem fazia a menor ideia de quem era Miguel de Cer­van­tes, foi pega de surpresa e engoliu a história. Pelo menos desta vez acabou perdoando-lhe a fraqueza...

Publicado no Jornal do Bibliófilo, edição N. 5, 2006




Nenhum comentário:

Postar um comentário