BIBLIOFILIA - IV

Da literomania e o que vem a ser

Campos de Carvalho é um dos mais importantes ficcionistas brasileiros do século XX. Carlos Heitor
Cony o compara a Swift, acrescentando: “há quem goste, há quem deteste, mas não há indiferentes”. Autor de obras incomparáveis em nossas letras, entre as quais destacam-se “A Lua vem da Ásia”, “O Púcaro Búlgaro” e “Vaca de Nariz Sutil” — entre outras —, deixou também obras praticamente desaparecidas das livrarias como seu primeiro romance “Tribo” (1954) e o livro de crônicas “Banda Forra” (1941). É desse último que reproduzimos o texto abaixo:

O Homem é um poço de manias.

Embora não seja esta a mais preciosa, nem a mais precisa, das definições do ser humano, é tão próxima da verdade como outras muitas que andam por aí.

E quando falamos do “homem”, queremos dizer, naturalmente, deste animal moderno e civilizado, todo mer­gulhado em casaca e dívi­das, e não daquele outro perdido sel­va­gemente na paradisíaca liber­dade de alguma “jungle”, e que pro­vavel­mente ainda é pior.

Uma auto-análise ligeira nos da­rá, senão a justa medida, uma idéia bastante eloquen­te do quanto so­mos presas de uma infinida­de de pe­quenos e gran­des hábitos, ou re­don­das ma­nias, e de como, afinal de con­tas, cons­­tituímos a parte me­nor e menos subs­tancial de nós mes­mos.

Muitas dessas idéias fixas que nos guiam na sociedade, e que são as sobreditas manias civi­lizadas, nós as trazemos e ali­mentamos por injun­ção, muitas vezes, dessa mes­ma so­cie­dade, como será fácil de­mon­strar. Assim esse pacato cida­dão da capital que toma automa­tica­mente o lado par da via pú­blica para cami­nhar dez passos que se­jam, está cum­prindo às cegas as determi­na­ções policiais do Serviço de Trân­sito, que enten­deu ser a “mão” a ma­neira racional de evitar trope­ções e tiros entre dois conhecidos ou des­­conhe­cidos. Também o que almoça e janta es­cru­pulosamente e em ho­ras de­ter­minadas, todo santo dia, ainda que não sin­ta fome nem von­tade de estar-se à mesa de refeição, é um maníaco por decoro so­cial, como todos os cidadãos ho­nestos e fa­­min­tos do planeta.

Outras monomanias vêm, no en­tanto, no sangue mesmo da criatura, através desses princípios mende­lianos de fácil citação e de com­preensão difícil e, quiçá, impos­sível. Porque os pais tiveram, em vi­da, tais e tais prejuízos morais, esté­ticos e religiosos, sentem-se os filhos de certo modo obrigados a nutri-los igualmente, ainda contra a íntima vontade. Muitas vezes, em face de uma bela obra de arte (aliás raras vezes, porque a situação é pou­co frequente) pensamos estar admi­rando-a com o nosso senti­men­to, e o que acontece é que a vemos e apre­ciamos com os olhos atávicos de toda a nossa remota ascendên­cia. É tão nos­sa a opinião que formar­mos sobre deter­minado assunto ou fato como o são, de regra, as cruzes de nossa sífilis, o pavor que temos pelo inferno, os traços de nossa fi­sio­nomia, e ainda outras carac­te­rís­ticas que a pro­pósito se poderiam acrescentar. Nossos pais e avós, to­dos os nos­sos avoen­gos ilustres ou vão, encontram-se de tal sorte presentes em nossa conduta que, afi­nal, não passamos deles mesmos e simples­mente somos a nossa árvo­re genealógica em miniatura.

Uma das obsessões que mais fun­­­da­mente costumam vincar o ca­ráter de certas criaturas, prefe­ren­temente de criaturas que sejam ge­radas por intelectuais ou artistas da pena, é, sem dúvida, a que cha­ma­mos de “literomania”, e que tra­ta­­remos de expor o que seja.

Chamar-se-á literômano, em uma pala­vra, o cidadão que enxerga as coisas deste mundo, e não raro as do outro, através das lentes fanta­sistas da literatura, como pro­va­velmente faziam seus pais e avós mais remotos. Outros pre­ferirão chamá-lo, com na­turalidade, litera­to obse­dado e maluco, criatura des­­­mio­lada, e outros termos mais, o que vem a dar na mesma desde que se trate de igual fenômeno. Se a veia lhe arrebenta para o lado da Poe­sia, em tudo há de ver tal espéci­me cores e harmonia, ritmos e pai­xões ins­piradoras: e fará versos com a na­tu­ralidade com que outros fazem a di­gestão. Se, ao contrário, dá para ensaísta po­lítico, de tipo reformador e messiânico, há de enxergar em tu­do pústulas e erros, anarquias e des­mandos, para cujo concerto ou te­ra­­pêu­tica terá nos mio­los, no en­tanto, a panacéia in­falível.

Mas o que mais caracteriza a pai­xão impres­sio­nista do nosso literô­mano não é a poesia fácil nem o fácil prognóstico que faz das ruin­dades sociais aqui do orbe, posto que nós todos, mais ou me­nos, tra­zemos no ventre o germe do so­neto e o da re­cons­trução política. Ca­racteriza-o, ao literô­ma­no, a pe­cu­liaridade de ime­diata­mente re­duzir todo esse lirismo ou toda a autopsia dos cos­tumes a fórmulas literárias de mais ou menos efeito, conforme a capa­cidade da res­pec­tiva massa ence­fálica. Assim, em face do trágico es­petáculo da morte, já lhe corisca pela mente, de par com a primeira emo­ção, um decas­sílabo bem composto e ritmado, em que Parca a qualquer custo rime com o que mais fúnebre e funesto lhe pa­reça. Diante de uma grave crise financeira ou política, ei-lo no bonde, o nosso ho­mem, a ela­borar mental­mente todo um tratado de bem go­vernar as gentes, segundo a dou­trina de quantos Pla­tões e Mo­rus haja pro­duzido o mundo até a pre­sente data.

Sêneca, que se ocupou de muita coisa séria e interessante, ocupou-se desse tipo estranho de obsedado das letras, e dele disse no plural, cer­ta­mente por ser um deles: “Litte­rarum intemperantia labora­mus”, o que vem a ser, em miúdo, “sofre­mos da intemperança lite­rária”.

Não resta a menor dúvida de que é este, de quantos males mentais se transmitam de geração a geração, um dos mais lamentáveis e mais me­re­cedores de nossa lástima. O por­ta­dor de tara tão ingrata vê-se, a vida inteira, na contingência de ver­ter para o papel de sua consciência, em letras de for­ma que só ele pode ler, o que de pal­pável lhe caia sob os olhos ou sob o nariz, e que não é pouco. Não vive tranquilo nem feliz, nesse esforço ingente de re­gistrar na memória, e no melhor estilo, os fatos mais come­zinhos de sua coti­diana existência. Ainda será um pre­sente dos deuses si o mono­maníaco se contenta, em sua insânia, a com­por espiri­tualmente apenas seus poemas e seus tra­tados polí­ticos, e não cuide, também, de compô-los de verdade e lançá-los assim no mercado, para martírio de toda a humanidade.

A fauna dos literômanos é muito maior do que se pensa, mesmo nes­tes tempos em que as cons­ciên­­­cias an­dam abarrotadas, até a tam­pa, ape­nas de cifras e alga­ris­mos. Quando não se tornam lou­cos, tornam-se ficcionistas de mais ou me­nos fôlego, o que é uma for­ma so­ciável da loucura. Deitam o verbo a propósito de tudo e de na­da, e são responsáveis por essa vul­tosa mer­­ca­­doria, cada vez maior, que vemos plan­tada sobre as prateleiras das livra­rias.  

Mas cheguemos, afinal, a um pou­co de tolerância e compreensão a res­peito da dita literomania, admitindo que dela surdem, não raro, uns tantos espíritos de lei, que sempre logram acrescentar algo ao edifício do pensa­mento universal. Alguns desses letra­dos em ebulição per­manente têm-se tornado, para gáu­dio nosso, em re­quin­tados e aba­lizados homens de pensamento, legando-nos, à custa de sua linotipo cerebral, conceitos não raro re­pas­sados de genialidade, que natu­ralmente ninguém levou em conta. Faça-se, de vez que não cabe tama­nho esforço nos limites desta crônica, faça-se, um dia, uma análise retrospectiva da vida privada dos grandes pensadores de todos os tempos, para aquilatar-se até onde foram eles vítimas da obsessão lite­rária ou idéia fixa de que vimos tratando. É de crer-se que em bom número não passassem, desde a infância, de meditativas e cataloga­do­­ras criaturas, com a sua máquina da­­tilográfica permanentemente me­tida na cabeça, para o que desse e viesse. 

A esses maníacos de talento, qual­­­quer que fosse a língua em que se tivessem revelado loucos, fique aqui a nossa sentida homenagem. Rea­lizaram eles, à custa de sua lou­cura, incomparavelmente mais do que outros havidos na conta de sãos de corpo e espírito, o que não deixa de ser motivo de tristeza e inquietação de nossa parte.

(Campos de Carvalho, BANDA FORRA, 1941 – SP)


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