BIBLIOFILIA - III

Livreiros e suas manias

texto de Bira Câmara

Foi-se o tempo em que sebo era sinônimo de livros amon­toados pe­lo chão e espalhados ao acaso. Na era digital, as livrarias têm de competir com a Internet em agilidade e organização. Muitos livreiros já sacaram isso e o re­sultado é que muitos sebos mon­­ta­dos de uma década para cá surpreendem pela orga­ni­zação crite­riosa de seus acervos. Alguns até deram-se ao trabalho de aprender biblio­teconomia para racionalizar a distribuição das obras nas estantes e localizá-las rapidamente. Quem ganha com isso é o cliente, que não precisa perder tempo garimpando montanhas de livros empoei­rados p­ara encontrar a obra que deseja.

Quem já passou dos cinquenta e tem o hábito de frequentar sebos deve se lembrar do italiano Arrigo,
verdadeiro alfarrabista à moda antiga. Sua livraria ficava no décimo andar de um prédio na Líbero Badaró e tinha raridades que faziam a delícia de todo biblio­ma­níaco. No entanto, encontrar a obra desejada no sebo do Arrigo era uma verdadeira tortura, pois mal dava para entrar nele. Os livros ficavam amontoados em pilhas empoei­radas pelo chão e nas estantes. Já no final de sua vida, a quantidade de obras aumentou tanto que era impossível entrar numa das salas da livraria: ela ficou literalmente lotada de livros empi­lhados sem a menor ordem! E, para piorar, o velho tinha o hábito de ler jornais o tempo todo; à medida que ia lendo, jogava as páginas no chão formando um tapete de jornais no labirinto de sua babélica livraria, povoada de baratas e traças. 

Pouco antes da morte de Arrigo, a livreira Hilda Soban andou por lá à cata de algumas rari­­dades. Quando foi pegar um livro no meio de uma pilha gigantesca e tre­mulante, Arrigo prontamente a impediu. “Non mexa aí! Se tirar qualquer livro do lugar vai romper o equilíbrio estático da pilha e vem tudo abaixo!” Não sei se “equilíbrio estático” faz algum sentido do ponto de vista científico, mas sem dúvida é um criativo eufemismo para designar a bagunça reinante na sua livraria... 

Atribui-se a Arrigo uma anedota que cir­cula entre os livreiros mais antigos: um cliente havia aca­bado de comprar-lhe uma raridade biblio­­gráfica por alto preço e, ao folheá-la, encontrou um caruncho no meio dela. O cliente esboçou uma recla­mação, mas Arrigo, dono de brilhante presença de espírito, desarmou-o dizendo: “Não se preocupe com isso! É brinde da casa.”

Alguns livreiros, da mesma forma que os seus clientes bibliófilos, também têm lá suas manias. Quem é do ramo sabe que pechinchar é uma praxe. No entanto, havia um se­bo em São Paulo onde era proibido conjugar este verbo: se você pedisse qualquer desconto na livraria do Lisboa ele fechava a cara, tirava rispidamente o livro da sua mão e se recusava a vendê-lo. Se o fre­guês in­sis­tisse, acabava expulso dali... Apesar disso, quando o sebo fechou, deixou saudade, pois apesar da singularidade de seu proprietário era possível encontrar nele muita coisa boa a preços bem acessíveis. 

E já que estamos resgatando algumas anedotas do passado, porque não encerrar contando mais uma do Seu Luiz, da Ornabi? Foi nos anos 40, e ele havia acabado de chegar ao Brasil. Seu primeiro emprego em São Paulo foi na livraria Lusitana, que hoje não existe mais. O presidente da República era o Dutra e sua esposa fazia a delícia dos car­tu­nistas da época pelos seus quilinhos a mais. Em certa ocasião o Vieira, proprietário da livraria, percebeu que um de seus funcionários equilibrava-se há mais de meia hora no alto de uma escada, fuçando os livros do topo da estante. “O que você está fazendo aí?” – perguntou-lhe. “Estou a procurar a mulher do Dutra”, respondeu o empregado. Demorou para que o Vieira entendesse o que ele dizia. Na verdade o empregado, um tanto ou quanto obtuso, procurava por um livro solicitado por um freguês: A Mulher Adúltera, de Perez Escrich...

Publicado na edição Nº 4 do Jornal do Bibliófilo • Julho de 2006 

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