sexta-feira, 9 de abril de 2021

Uma obra que retrata o pior pesadelo de um bibliófilo

Publicada em 1905, esta curiosa obra de Charles Asselineau — O Inferno do Bibliófilo — aborda em tom de sátira o pitoresco universo dos bouquineurs (amantes de livros antigos e raros) e suas atribulações.


Texto de Bira Câmara


Em Paris, desde o século XVI os vendedores am­bu­lantes de livros an­tigos e usados — os bou­quinistes (*) — se espalham pelos cais ao longo do rio Sena, onde expõem seus livros em caixas. 

Esta tradição se mantém até ho­je. Os bou­quinistes ocuparam as duas margens do Sena e, atualmente, existem ali cerca de 900 “caixas verdes”, com mais de 300.000 livros e um grande número de estampas, revistas, cartões postais. Estes livreiros têm um estatuto especial e desde 2011 a UNESCO tornou-os Pa­tri­mô­nio Mun­dial. Mais de duzentos bouquinistes não pagam taxa nem imposto para exercer a sua atividade, mas de­vem cumprir normas rígidas sobre este comércio.



Tal atividade, como não poderia deixar de ser, não foi sempre alimentada somente pelos anô­­nimos amantes de livros antigos e por comerciantes atrás de raridades bi­blio­­gráficas, mas também pelos gran­­des escritores que assiduamente frequentavam os cais. Ana­tole France, Balzac, entre outros, registraram um apreço especial pelos bou­quinistes. Em Pierre Nozière, France registrou:

«... não conheço  prazer mais agradável que o de buquinar nos cais. Sacudimos com a poei­ra da caixa de duas a mil sombras terríveis ou encantadoras. Nestes humildes quiosques fazemos evocações mágicas. Conversamos com os mortos que aqui encontramos aos mon­tes. Os Champs Elysées, tão decantados pelos antigos, não oferecem nada aos sábios após sua morte que o Parisiense não encontre nesta vida nos cais.»

Octave Uzanne escreveu sobre a Psychologie des quais, listando as profissões abandonadas pelos alfarrabistas para dedicar-se a este co­mércio. Entre eles havia barbeiros, fer­roviá­rios, notários, um comediante e até mesmo um escritor: Charles Dodeman, autor de romances, contos, comédias e canções.

Há um rico anedotário sobre este universo, e histórias reais de verdadeiros achados de raridades literárias, como a do Marquês de Li­bri, que pagou 60 francos por uma série de crônicas italianas do século XVI, e cedeu-as para a Biblioteca Nacional por... 30.000 francos!

Esta obra de Charles Asse­li­neau — O Inferno do Bibliófilo —, é uma saborosa sátira ao universo dos bou­quinistes e do amante de livros antigos. E não é um universo tão estranho ao dos bibliófilos e alfarrabistas brasileiros. O perfil psicológico de ambos tem muita coisa em comum com os franceses, como alguns livreiros e colecionadores da velha guarda por certo reconhecerão.

NOTA:

(*) O termo «bouqui­nis­te» aparece no Dictionnaire de l'Académie Française na edição de 1762 com a definição e a grafia seguinte: «Aquele que vende ou compra velhos Livros, os Bouquins» 1. A eti­mo­­logia de «bouquin» (no sentido de «livro de pouco valor», usado) não é clara, mas a palavra com este sig­nificado é registrada desde 1694, sempre pela Academia, e se originaria da palavra flamenga boeckin.

O Inferno do Bibliófilo 

Charles Asse­li­neau

Tradução e prefácio de Bira Câmara. Brochura, 72 páginas, formato 13 X 19,4 cm., ilustrada.

PEDIDOS:
jornalivros@gmail.com


SOBRE  O AUTOR


François-Alexandre-Charles As­se­lineau nasceu em Paris, a 13 de maio de 1820. Assim como Gé­rard de Ner­val, era filho de médico, e também como ele não seguiu os passos do pai. Depois dos estudos no liceu Bourbon (atualmente Con­dorcet), onde teve como companheiro Nadar, e de tímidos ensaios literários, preferiu colocar sua pena a serviço de outros autores, e especialmente dos boêmios românticos da fulgurante geração de 1830, cujos muitos nomes esquecidos são lembrados apenas em suas Mélanges tirés d’une petite bibliothè­que romantique, publicada em 1866. 

A respeito de Charles Asselineau, Lin­durst, o arquivista do Romantismo, registrou que com esta obra «ele retirou do esquecimento todos esses volumes com vi­nhe­tas estranhas, de tipografia característica, que ca­talogou, descreveu, adornou com entusiasmo meticuloso de verdadeiro bibliófilo. As­selineau, como qualquer criatura delicada favorecido pelo céu com uma encantadora ma­nia, tem a sua tulipa negra, sua dália azul, seu desideratum.»

A paixão bibliófila de Charles Asselineau  o levou a morar num lugar perto da Biblioteca da rua Richelieu, e regularmente frequentar os alfarrabistas ao longo do Sena e ca­sas de leilões, que evoca com humor em L’Enfer du bibliophile. «Pequeno, moreno, sem­pre vestido de preto e com gravata branca, sua aparência era a do estudioso mais ilustre, que de imediato deixava perceber um erudito de boa companhia, um estudioso equilibrado pelo homem do mundo. Seus olhos, com leve traço chinês, anunciava muita curiosidade e refinamento. Ele falava sua­vemente — tal era Char­les Asselineau ... aos vinte e cinco anos — quando o vi pela primeira vez, na Biblioteca da rua Richelieu», escreve Charles Monselet em De A a Z, retratos contemporâneos. Na mesma época (1845), Asselineau conheceu Baudelaire, de quem se tornou o amigo dedicado e seu primeiro biógrafo, entrando ao mesmo tempo no círculo do editor Poulet-Malassis (*), que teve na publicação de Fleurs du Mal o maior feito de sua casa editora.

Dedicou sua juventude à erudição. Uma pequena fortuna lhe permitiu dedicar-se à literatura, de acordo com as suas preferências particulares. Charles Asselineau explorou pela primeira vez a poesia da decadência latina, que o levou a valorizar os escrito­res mais obscuros de seu tempo, aqueles que a fama tinha injustamente negligenciado. Neste santuário, ele se juntou com alguns decifradores de grimórios, incluindo Mon­selet que, embora mais jovem, assumiu rapidamente a liderança desta falange de elite.

Como representante tardio da geração de 1830, recebeu de Théophile Gautier um livro com a seguinte dedicatória:

A Charles Asselineau o último romântico, um dos mais antigos e primeiros românticos.

O estudioso amável e erudito considerou um dia que poderia escrever um romance. Sob a influência de Swedenborg, que ao mesmo tempo estudava muito, como Balzac, escreveu uma série de novelas: La Double Vie. «Este livro encantador, disse Baudelaire, pessoal, muito pessoal, é como um monólogo de inverno sussurrado pelo autor, com os pés perto da lareira.»

Mais tarde Asselineau apresentou a Ligne brisée («Linha quebrada»), «história de trinta anos atrás», com a esperança de que a posteridade preferisse suas obras de imaginação aos seus estudos bibliófilos. Mas ele estava errado. O espírito deste prosador agradável que, nas reuniões dos literatos, encantava, divertia, às vezes deslumbrava, esfriava diante da ficção. Ele amava demais os livros, e foi isto que o arruinou. Parafrasean­do um famoso ditado, poderia se dizer que é melhor para um escritor começar pela poe­sia e terminar pela erudição. Desde a sua ju­ventude, Asselineau tinha esterilizado suas faculdades criativas. Também não foi pelos seus contos, de um estilo elegante e um tom filosófico, que ficou consagrado. Uma fantasia, como O Inferno do Bi­bliófilo, dá a sua melhor amostra. Mas, na verdade, sua pena valente só tinha asas para reparar uma desgraça ou uma injustiça literária.

Em 1849 ou 1850,  ele conheceu Nerval, cujo gosto comum pelas longas conversas eruditas, discrição elegante, humor, curiosidade partilhada pela literatura alemã e pela fantasia de Swedenborg tornou-os grandes amigos.

Asselineau colaborou com várias revistas literárias e artísticas, como Courier Ar­tistique — trabalhou para a biblioteca Ma­za­rine, e escreveu vários livros: uma coleção de histórias La double vie (1858), L’enfer du bibliophile (1860), Le paradis des gens de lettres (1862), Mélanges tirés d’une petite bibliothèque roman­tique (1866), L’Italie et Constantinople (1869), André Boulle, ébéniste de Louis XIV (1872), Bibliographie romantique (1872), etc.

Por vocação, Asselineau era o amigo dos bons e dos maus dias. Na ocasião da publicação de As Flores do Mal em 1857, Asselineau deu grande apoio a Baudelaire, que recebera pesadas críticas por parte de alguns intelectuais. Também sustentou Baudelaire na adversidade; e quando seu infeliz companheiro lhe apareceu na plataforma na Gare du Nord, vindo de Bruxelas, meio paralisado, golpeado com afasia, apoiando o braço esquerdo em Alfred Stevens, enquanto o ou­tro braço pendia inerte, ao ouvir o grito agudo com que este o cumprimentou, seu coração ficou dilacerado e nunca mais cicatrizou. Ele amparou o poeta em seus últimos momentos, acompanhou seus restos mortais ao cemitério de Montparnasse, e em seguida, depois de Banville, fez um discurso em que os soluços sufocaram-lhe a voz.

As perseguições, injustiças e golpes sofridos pelos seus amigos o abatiam como se fossem dirigidos a ele. Logo depois de Bau­delaire, viu morrer Philoxène Boyer, poeta me­nor que ele amava com entusiasmo, aos quarenta e dois anos. Em 1872, Théophile Gau­­tier, glorioso soldado da batalha de Her­nani (**), morria depois de uma lenta agonia. Depois foi a vez de Phila­rète Chasles, que mor­reu sem que o público se comovesse. Esta indiferença para com um dos mais importantes eruditos da época o fez avaliar a futilidade do seu esforço. Finalmente, Céles­tin Nanteuil — príncipe dos vinhetistas, que acabara de ilustrar com uma gravura a Voya­ge en Italie de Asselineau, morria solitário e o romantismo perdia sua última chama.

Em sua casa, Charles Asselineau ainda pode encontrar consolo no comércio dos livros que tinha cuidadosamente escolhido. Mas uma biblioteca parece uma reunião de personagens mudos quando não mais há amigos para compartilhar seus gostos e manter a ilusão. As horas passam em silêncio: «um grande sono escuro cai sobre a vida».

A tristeza, o desânimo apressaram o seu fim. Asselineau sentia-se exilado de sua pátria natal interior. Depois de um inverno pe­noso, ele fez uma viagem de cura a Chatel­guyon, onde morreu em 25 de julho de 1874, com a idade de 54 anos. Foi enterrado no ce­mitério de Montpar­nasse, e Théodore de Ban­ville, que ele admirava como a Baude­laire, deu-lhe um último adeus.

Para alguns críticos, Asselineau foi escritor de um único livro: Mélanges tirés d’une petite biblio­thèque romantique (1866), com uma pequena tiragem de 381 exemplares, precedido de um frontispício de Célestin Nanteuil. Este é o seu monumento literário que os anos não conseguiram degradar; cada pedra dele foi esculpida com a arte de um estudioso apai­­­­xona­do. Estas páginas contam os dias felizes de um pesquisador, suas buscas em livrarias, suas escavações nas caixas de livros de cinco sous (***) é apenas uma memória da idade de ouro da bibliofilia. Os comerciantes eram humildes colaboradores de bons po­lígrafos; cada caixa escondia tesouros. Suas transações modestas tinham um sabor filantrópico.
Duas paixões preencheram sua vida: a ami­­zade e a bibliofilia e ambas inspiram uma simpatia igual. Charles Asselineau não se limitou a relacionar as obras que havia reunido, mas se deu ao trabalho (ou prazer) de ler, analisar e extrair delas belezas escondidas.

Junto com Banville publicou a terceira edi­ção de Fleurs du Mal em 1868. A mãe de Bau­delaire, Caroline Aupick, confiou aos seus cui­dados a edição das obras completas de seu filho. Foi também Asselineau que, em 1869, escreveu a primeira biografia de Bau­de­laire: Charles Baudelaire, sua vida e sua obra.

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NOTAS:


(*) Pequena moeda de cobre equivalente a vigésima parte do franco, ou cinco cêntimos.
(*)
(***) Este episódio, ocorrido em 25 de fevereiro de 1830 em Paris, é considerado a mais famosa batalha de­sen­­cadeada por escritores e artistas. «Hernani» — título de uma peça de Victor Hugo — foi representada naquela noite pela primeira vez. Com apenas 27 anos, Hugo já era um escritor de sucesso e fazia parte do Cenáculo Romântico, animado por Charles Nodier e pelo poeta Sainte-Beuve, teórico do movimento. O grupo fazia suas reuniões na casa de Hugo em Paris, frequentada por personagens como Balzac, Vigny, Musset, Dumas, o pintor Dela­croix, en­tre outros. Esta peça teatral despertou grande entusiasmo, pois quebrava os cânones da drama­turgia da época. Durante o espetáculo, reunidos em bloco, inflamados pe­las longas discussões preliminares, os românticos da plateia, entre os quais se des­tacavam Gérard de Nerval e Théo­phile Gautier, vestidos com jaqueta vermelha brilhante, insultavam insistentemente os «cabeleiras postiças» dos camarotes e balcões nobres que permane­ciam fieis às regras clássicas. Houve agressões físicas e os dias seguintes foram ainda mais agitados. Em ju­lho do mesmo ano, o rei Charles X foi expulso de Pa­ris, por causa da revolução romântica dos «Três Gloriosos» (Revolução de Julho de 1830), também conhecida em francês por Les Trois Glorieuses, designação dada aos acontecimentos dos dias 27, 28 e 29 de Julho de 1830, durante os quais o povo de Paris e as sociedades secretas republicanas, liderados pela burguesia liberal, fizeram uma série de levantes contra Carlos X da França, culminando na sua abdicação e no fim do perío­do conhecido como Restauração Francesa.

Fontes:

Charles Monselet, De A à Z: portraits con­tem­porains, Bibliothèque Charpentier, G. Char­pen­tier, 1888.
Fernand Chaffiol-Debillemont, Charles Asse­li­neau, Un pêcheur d’ombres, Mercure de France, 1952.
Sylvie Lécuyer, Charles Asselineau (1820-1874) www.sylvie-lecuyer.net/charlesasselinea.html


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