sexta-feira, 9 de abril de 2021

Um socialista chinês no século XI

Pouca gente sabe que o modelo co­mu­nista implantado no século vinte na Rús­sia, na China e em Cuba já havia sido experimentado no século XI na própria China, e fracassou da mesma forma.

Texto de Bira Câmara

Desde a antiguidade o sonho de acabar com a miséria, de estabelecer a igualdade entre os homens e cons­truir uma sociedade mais justa, tem inspirado a mente dos pensadores a buscar fórmulas para concretizá-lo. E estas fórmulas invariavelmente fracassam quando colocadas em prática porque deixam de levar em conta que as desigualdades sociais, a pobreza, a concentração de renda não são produto somente de uma socie­dade doente, mas do egoísmo, da cobiça, do amor ao luxo e aos prazeres, que são inerentes à natureza humana. A solução parece simples: mudem-se os homens e a sociedade mudará. Sem isso, qualquer transformação resultará em regimes tirânicos e na supressão das liberdades individuais, como a história o demonstra. Não há co­mo mudar a natureza humana por leis ou decretos.

A utopia comunista ainda é, para muita gen­te, a única solução para todos os males da hu­mani­dade e nem mesmo o fracasso econômico dos países que a colocaram literalmente em prática desencoraja seus crentes. Uma coisa não pode ser negada nem pelo esquerdista mais fanático: o socialismo não deu certo em lugar algum e em tempo algum. É um fato e, em vão, os adeptos das ideias coletivistas tentam explicar este fracasso. 

Os teóricos do socialismo costumam buscar suas origens na antiguidade, principalmente em Platão, na “República”, que contém o embrião de algumas de suas ideias mais caras sobre o trabalho e a propriedade. Mas se esquecem de que esta república só existiu na imaginação do filósofo, que prevê no mesmo livro a ruína inevitável de seu sistema se viesse a cair nas mãos da democracia! A cons­tituição de Esparta com sua comunidade de bens, as leis agrárias levadas a Roma pelos Gracos, fornecem também argumentos históricos lembrados por eles. Mas se tivessem a preocupação com a verdade, acrescentariam que, em Esparta, a igualdade dos bens teve curta du­ração e que, para alguns milhares de cidadãos livres proprietários-socia­listas, havia mais de cem mil escravos, des­car­táveis à vontade e que em Roma, as leis agrárias não puderam jamais ser aplicadas e se tornaram a causa de longos anos de anarquia.

Diz Will Durant que «por algum tempo o Partido Comunista que governou a Rússia após a revolução de 1917 assumiu uma forma que lembrava estranhamente a República de Pla­tão». (*) Na Itália existiu durante algum tempo uma comunidade pitagórica comunista e vegetariana, inspirada na mesma que dominara uma das colônias gregas.

Pouca gente sabe que o modelo co­munista implantado no sé­culo vinte na Rús­sia, na China e em Cuba já havia sido experimentado no século XI na própria China, e também não deu certo. O refor­mador que logrou essa proeza, Wan-Ngan-Ché (1019-1086), realizou de mo­do completo o coletivismo da pro­du­ção agrária, estendendo-o pa­ra todas as indústrias, de modo a não deixar subsistir a propriedade individual e até a impe­dir o enriquecimento de todo cidadão.

Nesta época existiam na Chi­na seitas anarquistas ou niilistas, nascidas em meio ao caos rei­nante no império, que se propunham a destruir o edifício social. «A sociedade, diziam eles, baseia-se na lei, que não é senão injustiça e sofisma, sobre a propriedade, que não é senão rou­bo e extorsão, sobre a religião, que não passa de uma mentira, so­bre a força, que não é senão tirania».

Estes niilistas queriam destruir tu­do, para construir um novo edifício social. Suas ideias se­du­ziram tanta gente que eles se tornaram uma ameaça à estabilidade do império chinês. Ater­rorizados pela perspectiva da ruína social, pelo aumento da miséria, da fome que se espalhava pelas províncias assoladas por uma seca terrível e por terremotos, as classes dominantes e o pró­prio imperador curvaram-se às ideias socia­listas de Wan-Ngan-Ché e concordaram em colocá-las em prática na íntegra. A realidade era tão assustadora que até a implantação de um sis­­tema jamais experimentado era preferível a ela.

Nomeado ministro com plenos poderes pelo imperador Chen-­Tsung, Wan era um homem de vasta cultura, extraordinária eloquência e dotado daquela qua­lidade que decora as paredes do inferno: tinha boas intenções. O re­for­ma­dor proclamou o Estado soberano, proprietário, capitalista e gerente das indústrias, e que toda a produção seria distribuída aos habitantes na me­dida das necessidades de cada um. Lançou um im­posto especial aos ricos, calculado de forma que num prazo de cinco anos nada lhes restasse. Os magistrados determinavam, sem apelação, quais os ricos e quais os pobres. Toda a colheita era es­tocada em grandes celeiros man­tidos pelo Estado e, quando havia escassez de alimentos ou carestia numa determinada província, o que sobrava nos distritos mais favorecidos era escoado para lá. A riqueza, causa da infelicidade geral, precisava ser eliminada e também de impedida de se reconstituir; se o comércio, os bancos, a indústria e a usu­ra criam a riqueza, Wan-Ngan-Ché suprimiu-os e deu ao Estado o seu monopólio. O lucro seria repartido por milhares de mãos, pois, como o Estado representava todos os seus habitantes, cada um teria direito a uma par­te nesta propriedade coletiva.

O sistema parecia perfeito, em teoria: «ninguém seria rico, mas também não seria pobre; sendo todos iguais, o ódio, a inveja, a cobiça, as más ações desapareceriam como por encanto e os princípios de justiça impor-se-iam naturalmente num império regenerado.» Só tinham a per­der com isso, os usurários, os capitalistas, os que vivem das desgraças públicas e à custa da exploração dos trabalhadores.

Este discurso não parece familiar, mesmo nos dias atuais?

O reformador chinês teve quinze anos pa­ra implantar seu modelo, com plenos poderes, e foi saudado no início por um concerto de aplau­­sos e admiração geral. Como bom líder de seita, tinha um batalhão de seguidores que o idolatravam, seduzidos pelo seu discurso, pela sua ousadia, inteligência, coragem e tenacidade. Wan-Ngan-Ché colocou-os em todos os cargos importantes para fazer seu plano fun­cionar.

Mas logo começaram as ilusões. Das sementes que recebiam gratuitamente do Estado, os camponeses tiravam a parte necessária para ali­men­tar a família, vendiam ou trocavam outra parte por produtos que lhe faltavam, e só o que sobrava era usado para o plantio. O resultado é que as colheitas eram ruins e os lavradores con­ti­nuavam na miséria, que bem depressa se generalizou no império.

Embora diariamente os resultados desmentissem as esperanças do povo, o governo insistiu na experiên­cia por quinze anos. Só com a morte do imperador, que permaneceu fiel ao seu ministro enquanto viveu, é que Wan-Ngan-Ché foi destituído do cargo. A imperatriz regente, assus­tada com os clamores gerais contra ele e desani­mada pelos seus insu­ces­sos, substituiu-o pelo mi­nistro anterior, que era o seu maior adversário e tratou logo de apagar todos os vestígios de seu sistema des­moronado.

Wang Ngan-Ché acreditou que a máquina estatal montada por ele seria capaz de proporcionar ao povo as dádivas da vida e torná-lo feliz, e que para atingir este objetivo bastaria que todos seguissem as regras invariáveis da re­tidão. Isso foi o mesmo que tentar mudar a natureza dos homens através de um decreto, além de revelar desconhecimento da natureza humana. Acreditar que Estado conseguiria, «por leis sábias e inflexíveis, determinar a forma de observar as regras da retidão» pressupunha ingenuamente que toda a população estava imbuí­da do espírito coletivo e não pensava apenas no próprio bem-estar.

A única voz que se levantou no império para comba­ter suas reformas tinha sido a de Ssé-ma-Kuang, antigo ministro conservador, ho­­mem religioso, historiador erudito, poeta, pre­servador das tradições e igualmente bem intencionado. Tinha a seu favor, também, a sabedoria e não precisou conspirar para retomar seu cargo.

As reformas empreendidas durante quinze anos terminaram melancolicamente sem al­cançarem as metas esperadas pelo seu men­tor. Teve pelo menos o mérito de, tanto no seu início como no seu fim, ao contrário das revolu­ções cole­tivistas do século vinte, transcorrer sem derra­mamento de sangue ou tirania. Uma das causas do fracasso delas — apontada pelo historiador René Grous­­set — teria sido a corrupção dos próprios funcionários públicos encarregados de fazer o sis­tema funcionar. No passado como no presente, a verdade é que, quan­do se torna o único pa­trão e controla todos os meios de produção o Estado acaba, ine­vita­vel­mente, sendo mais nefasto que os “malvados” capitalistas... 

Curiosamente a crítica de Aristóteles à República comunista platônica lembra a do ministro conservador chinês em relação às reformas que foram implantadas na China no século XI: «estas e muitas outras coisas foram vá­rias vezes idealizadas no curso do tempo». O pessimismo de Aristóteles quanto à natureza humana o levava a acreditar que a comunhão de bens significaria a diminuição da responsabilidade, pois «se tudo pertence a todos, ninguém terá cuidado com coisa alguma». Além disso, com a abolição da propriedade e o desestímulo ao lucro, as pessoas se esquivariam do trabalho árduo; o sentimento de propriedade estimula a indústria, a agricultura e o cuidado com as coisas de modo geral. Assim, conforme Aristóteles, os inúmeros males da existência não são causados pela propriedade particular, mas derivam de outra fonte: a perversa natureza humana. «A ciência política não faz os homens e sim os toma tais quais são por sua própria natureza». (**) Uma lição que seria ignorada por todos os reformadores sociais ao longo da história...

*    *    *

Outra tentativa de implantar um modelo de administração coletivista, de cunho socia­lis­ta, aconteceu no século dezessete, na colônia americana de Plymouth. Seus habitantes, «revolucionários puritanos exilados, trouxeram para a América as ideias sociais esplêndidas que os haviam tornado insuportáveis na In­glaterra, e tentaram construir seu paraíso coletivista no Novo Mundo. As terras eram pro­­­priedade comunitária, a divisão do trabalho era decidida em assembleia e a colheita se divi­dia igualitariamente entre todas as bocas. O sis­tema havia resultado em confusão geral, a lavoura não produzia o su­ficien­te e aos poucos a miséria havia se transformado naturalmente em anarquia e ódio de todos contra todos.» (***)

A colônia só escapou do extermínio quando os colonos decidiram voltar ao antigo sistema de propriedade privada da terra. O resultado disso foi um surto de prosperidade que ajudou a fazer dos Estados Uni­dos o país mais rico do mun­do.

Uma coisa é certa: se no mundo real as ideias coleti­vistas são um fiasco, nem por isso deixam de seduzir a mente dos intelectuais. A maior parte dos romances de ficção científica descreve paraísos socialistas, onde o ideal de justiça social, liberdade, igualdade e frater­ni­dade foram alcançados. No fundo, isso não difere muito do milenarismo religioso; mas segundo a religião, o milênio, o paraíso, só pode ser alcançado mediante a regeneração moral e espiritual do indivíduo, sem o que uma socie­dade perfeita jamais será alcan­çada. Essa questão já ha­via sido discutida no século XVIII por Goethe e Schiller, por ocasião da revolução francesa; Schiller a saudou como a grande redentora da humanidade, já Goethe, avesso à fúria destrutiva e niveladora da revolução, acreditava que só a transformação individual, uma nova ética, poderia levar a humanidade a uma era de harmonia social.

Robert Owen (1771-1858), um dos mais nobres reformadores so­ciais, acreditava — como Rousseau — que o homem é determinado pelo meio e que o caráter humano não é formado por si próprio, mas pelas condições de vida em que se desenvolve. Imbuído das mais nobres intenções e de sincero amor ao ser humano, criou na região de Indiana (Estados Unidos), em 1824, uma comu­nidade baseada na liberdade e igualdade, onde não havia exploração ou servidão.  Owen tinha um profundo desejo de proporcionar felicidade ao próximo, além da fé na bondade da natureza humana. Mas o choque com a realidade levou-o a rever seus mais caros conceitos. Depois de árduos esforços, foi obrigado a reconhecer que uma comunidade desse tipo é inviável se antes não for transformada a moral geral.

A colônia foi à falência, pois grande número de desmotivados encostava o corpo e passava o trabalho aos outros, provocando brigas. A realidade mostrou-lhe o equívoco de sua crença de que a miséria humana é causada apenas pelas «más instituições» em que vivem os homens e que a bondade da natureza humana floresceria por si mesma quando essas instituições fossem aprimoradas. Se tivesse lido Aristóteles não amargaria tal decepção... 

Em pleno século XXI, mesmo após o colapso dos países que adotaram o modelo cole­tivista, o ideal socialista continua vivo e permeia praticamente quase toda a produção cultural brasileira. Os seus sim­pa­tizantes não se convenceram do fracasso do comunismo e continuam, agora com novas armas, a sonhar com sua implantação. E o pior é que, na guerra cultural, os esquerdistas tomaram a dianteira e estão conseguindo calar quem se opõe a suas ideias. Por isso, mais do que nunca, é oportuno passar a limpo as lições da história, lembrando as palavras de Will Durant: “Aqueles que não sabem nada da história es­tão condenados para sempre a repeti-la.”

Toda tentativa de melhorar as estruturas da sociedade, proporcionar oportunidades iguais a todos os cidadãos, acabar com a miséria e as desigualdades sociais, não só é válida como necessária. O que é temerário é a ideia de colocar tudo abaixo para instaurar um regime que nunca deu certo em lugar algum.


NOTAS:

(*) Will Durant, Filosofia da Vida, pg. 67

(**) Aristóteles, Política, I, 10

(***) Olavo de Carvalho, Mais sábios que Deus, Diário do Comércio, 28 de novembro de 2005.


Um socialista chinês no século XI

Charles de Varigny

Brochura, 58 páginas, formato 11,5 X 18,5 cm., 2012. Tradução e prefácio de Bira Câmara. A edição traz, além do texto de Varigny, "A dinastia Song e o reformador Wang-Ngan-Ché", segundo o historiador René Grousset, extraído do  Cap. XXI da Histoire de la Chine (1942), Les Song et le problème des réformes, de René Grousset

Pedidos: jornalivros@gmail.com






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