sexta-feira, 9 de abril de 2021

O romance gótico revisitado por um mestre do folhetim

Paul Féval escreveu uma das mais surpreen­dentes histórias góticas: Cidade Vampiro. Contada num ritmo delirante, a história faz ao mesmo tempo uma paródia do romance de terror e a própria descons­trução do gênero.

(texto de Bira Câmara)

As obras de Paul Féval (1816-1887) deve­riam ser lidas e estudadas com atenção por qual­quer aspirante a ro­teirista, pois teriam muito a aprender com elas. Poucos escritores sabiam arquitetar uma trama e contar tão bem uma história como ele. Em suas mãos, até mesmo uma despre­tensiosa novela vampiresca acaba se desdo­brando em ines­peradas situações e numa complexa trama que transcende os limites do romance gótico. O que não é de surpreender, pois Féval foi um dos grandes autores de folhetim na França, chegando a riva­lizar com Alexandre Dumas. Sua obra, com­posta por mais de 200 volumes, cujos nu­merosos ro­mances populares edita­dos em folhetins al­cançaram enorme sucesso, igualou-o a nomes co­mo Balzac e Dumas no cenário lite­rário. 

Nos anos 50 e 60 seus romances de capa e espada foram muito populares no Brasil, como O Cor­cunda, O Cavaleiro Lagardére, Mis­térios de Londres e outros. Também incursionou pelo teatro e pela história política. Cultor da literatura fantástica, além de Ville-Vampire, escreveu obras como La Vampire, Le Chevalier Ténèbre, Une Histoire de Revenants, etc.

Ann Rad­cliffe
Mas não se iludam, Ville-Vampire vai um pouco além de um simples fo­lhetim de terror. Poderia ser con­siderado uma resposta francesa tardia à onda dos romances góticos ingleses, que teve em Ann Rad­cliffe sua grande expoente. Ousado, irre­verente, Féval brinca com os clichês do gênero lan­çando mão da sutileza característica do espírito francês. É como se ele quisesse de­monstrar que ainda era possível, em sua época, escrever uma novela gótica com todos os seus ingre­dien­tes, mas fazê-lo de uma forma inventiva como nem mesmo os in­gleses imagi­nariam. E surpreende logo de cara, pois a heroína da his­tória é ninguém mais que a pró­pria… Ann Radcliffe! E o mais irônico é que a rocambolesca aven­tura supostamente vivida pela escritora é muito mais fantástica do que todas as histórias escritas por ela.

A narrativa é rica de sutilezas; o autor nunca des­perdiça a opor­tunidade de “tirar um sarro” dos ingleses, de suas peculia­ridades, de sua mania de se acharem supe­riores aos mortais de outras raças. Todo o texto é permeado por uma afiada sátira do orgulho britânico, com sua inclinação ao narci­sismo, ao egocentrismo e ao menosprezo pelo resto da hu­ma­nidade. Assim, quando se refere à Ann Rad­cliffe, o tratamento de sua amiga Jebb é o mes­mo que se deveria dar a uma deusa ou a um ser superior. E, quando cai num buraco na Holanda, prestes a ser salva por um jovem compatriota, Ann quase entra em êxtase ao ad­mirar a beleza ímpar de seu salvador, descrito como um semi-deus… Da mes­ma forma, Féval tam­bém zomba das riva­lidades na­cionais dos povos das ilhas britâ­nicas. O obtuso criado inglês de Radcliffe, em situação de ex­tremo peri­go, prefere cru­zar os bra­ços em vez de ir ao so­corro de Merry Bones, um va­lente ir­lan­dês que con­segue es­capar da sanha de um grupo de vampiros gra­ças a… sua cabeça dura! Nem mesmo o cli­ma da Ingla­terra escapa da ironia do autor.

Alguém poderia argumentar que esse tipo de coisa nada tem a ver com o es­pírito do “ro­man­ce noir”, ao que po­deríamos res­ponder lem­brando que há uma ve­lada xenofobia nas primeiras novelas góticas, onde quase sem­­pre o vilão é um estrangeiro, de preferência latino… Em Confessio­nário dos Penitentes Negros, da própria Radcliffe, o vilão é italiano, assim como o monge dia­bólico do céle­bre romance de Mathew Gregory Lewis, The Monk. Não podemos es­­quecer, também, que as pri­meiras lendas vampi­rescas no leste eu­ro­peu sur­giram entre po­­vos sub­metidos à domina­ção estran­gei­ra e, é claro, a figura do vam­piro re­presenta o invasor, que vem su­b­jugá-los e “sugar o seu san­gue”. Em uma de suas obras, Prosper Me­rimée rela­tou algu­mas destas histórias onde o vam­piro é o in­va­sor turco. So­men­te a partir do conto de Poli­dori (1819) é que o per­so­­nagem sofis­ticou-se e, influen­ciado pelas ideias iluministas do século de­zoito, passou a ser re­pre­sentado como um aris­tocrata, um mem­­bro da classe ocio­sa que vive da exploração da classe trabalha­dora sugan­do-lhe o sangue. A metá­fora é óbvia.

Já o vampiro Goëtzi, de Cida­de Vam­piro, é um pequeno bur­guês, doutor que nunca exerceu a me­dicina, ambicioso e sedento não só do sangue de suas vítimas, mas também de suas pos­ses. Tem o poder de desdo­brar-se e de transfor­mar suas víti­mas em animais, aves, insetos e até trocar o sexo. A sua entourage mais parece uma troupe circense: cães com cara huma­na, uma mulher careca, um homem sem rosto, um papagaio....

Desconstrução do gótico

Quem leu Os Mistérios de Udolfo com­preenderá melhor esta paródia ge­nial, que brinca com os ingre­dientes mais caros à sua autora: heroínas ator­menta­das por tuto­res cruéis e desonestos, mas­morras, cas­telos arruinados, etc. O pró­prio estilo de Radcliffe é parodiado, numa espécie de met­acrítica, quando a incon­sis­tência de determinado perso­nagem é comen­tada, bem como a mania da autora de justificar e explicar.

Escrita em 1875 (portanto 22 anos antes de Drácula), lança mão de alguns artifícios inova­dores no andamento da história; ela começa sendo parcialmente contada por frag­mentos de cartas e por alguém que a ouviu da própria boca de Ann Radcliffe. Outro detalhe é que em alguns pontos a nar­rativa é in­terrom­pida para voltar no tempo e descrever os even­tos que prece­de­ram a ação que está sendo des­crita. Im­pos­sível não deixar de lem­brar que este tipo de re­cur­so hoje é utili­za­do por rotei­ristas de ci­nema até a exaus­tão como se fosse novi­dade.

A forma como Féval desdobra a tra­ma, mas ao mesmo tempo toma atalhos para encadear as se­quên­cias e evitar ex­plicações detalha­das torna a leitura fluen­te; o leitor é “fisgado” e não larga o livro até chegar ao final, como se assistísse a um thriller. Além de não economizar surpresas, deixando o leitor à espera da próxima, não perde tempo com descri­ções inúteis e nem mesmo com o modus operandi do vampiro Göetzi, que beira o bizarro. Ele faz transplante de cabelo e suga o sangue de uma vítima sem mordê-la, depois de espetar-lhe o pescoço com uma agulha; além de transformar al­gu­mas delas em animais e até insetos! Vam­piro exigente, sente repug­nância pelo san­gue de uma velha e só tem apetite por donzelas…

Paul Féval, em caricatura
de Étienne Carjat (1862)
A habilidade de Féval para contar bem uma história pode ser avaliada pela ausência de “fios soltos” na
sua narrativa, onde detalhes aparen­temente insigni­ficantes mais adiante servirão para jus­tificar e/ou “amar­rar” seg­mentos. Uma bela lição para os roteiristas de Holly­wood, que quase sempre pulam por cima da lógica, da verossimilhança e até da coerência do argumento, ao deixar de explicar pontos importantes do roteiro.

A sensação que se tem ao ler esta novela é que ela poderia muito bem ter sido escrita nos dias de hoje. Contada num ritmo delirante, a história faz ao mes­mo tempo uma paródia do romance de terror e a pró­pria descons­trução do gêne­ro. Para quem está familiarizado com os clichês e arquétipos da clássica novela góti­ca, Cidade Vampiro é um prato cheio, com todos os seus ele­mentos: o fantástico, o assus­tador, o terrorífico, mas também irresis­tivelmente divertida. Além disso, a narrativa é tensa e pontuada por muita ação, sem contar com o ines­perado a cada página. A descrição de Selene, a cidade dos vampiros, é magistral, cinética, oní­rica e lisérgica como uma viagem de áci­do. Que formidável desafio teria um diretor de cinema ou um desenhista de HQ se ten­tasse passar para a tela ou para o papel as imagens surreais da cidade dos vampiros, com sua esdrúxula arquitetura, suas es­tátuas de animais bizarros e de donzelas subjugadas por feras mito­lógicas!

Um vampiro diferente

A fixação pelo bizarro, pelo gro­tesco, pelo humor negro, tem raízes na literatura fantástica na França por obra e graça de Hof­­­fmann, que caiu no gosto dos fran­ceses e teve incontáveis edi­ções por lá. Para o leitor entender melhor, já por volta de 1828, quando os contos de Hof­fmann foram tradu­zidos pela primeira vez na França, os ro­mances góticos in­gleses (Rad­­cliffe, Byron, Maturin, Lewis, etc.) já tinham entrado em estado de saturação com seus castelos, ruínas, pai­sagens tétri­cas, fantasmas, monges mal­feitores, etc. Todos esses clichês já estavam esgo­tados e só poderiam ser objeto de paródia ou crítica, como o fez Jane Austen em A Aba­dia de Northanger (1817), onde os romances góticos e seus excessos que beiram o ridículo são substituídos por uma história prosaica e um cenário cotidiano plau­sível. Hoff­­mann mudou este panorama e ins­pirou muitos autores franceses como Nerval, Musset, Gauthier e até Balzac – entre outros, dando nova direção para a literatura fantástica. Assim, um autor que abordasse a temática gótica mais de 40 anos depois de sua saturação, só poderia transgredir o gênero, inová-lo, romper seus para­digmas, revestir a figura vam­piresca com outros atributos e é o que Féval fez com o vampiro Göetzi. Os críti­cos sempre torceram o nariz para este gênero, considerado de gosto duvi­doso e recheado de excessos imaginativos. Mas o que é condenável para a crítica, quase sempre cai no gosto popular…

Sem dúvida o senso de humor apu­ra­do e o gosto pelo burlesco, na medida cer­ta, lembram Hoffmann. Aliás, em mui­tas produções da ver­tente gótica o hu­mor está presente, mesmo que às vezes de forma sutil. Esse toque humorístico ou irônico faz o papel da habitual pis­ca­dela, dei­xando explícito a men­tira, o em­buste, a in­ven­ção.

Entre outras sutilezas que o leitor perspicaz há de descobrir no texto, desta­camos o nome do vampiro-vilão da his­tória, sr. Göe­tzi, aparentemente ins­pi­­rado no termo “goétie” (em português goécia, do latim me­dieval goe­tia), que designa a prática da magia ne­gra. Com efeito, trata-se de um arqui­vampiro capaz de des­dobrar-se em múltiplas persona­lidades, como um verdadeiro mago negro. 

O morcego é uma figura emble­mática do universo vampi­res­co; no entanto, Fé­val quebra este pa­radig­ma e põe a ara­nha em seu lugar. Não pode­ríamos dei­xar de no­tar que a estratégia do sr. Göet­zi para al­cançar seus obje­tivos tem algo a ver com es­te aracní­deo: atra­vés do des­do­bra­mento de seus asse­clas, ele vai se infil­trando no ter­ri­tório da vítima, en­vol­vendo-a com suas intrigas até dar o bote final. A própria trama da história é como uma teia de aranha, não linear, contada com saltos no tempo e cortes que lembram a estrutura narrativa de uma história em quadrinhos ou de um filme de ficção científica, o que lhe dá um toque de modernidade.

O rótulo de surrealista também po­de­­ria muito bem ser aplicado a Cidade Vampiro, assim como o de pós-moderno, o que é surpreendente, pois seu autor passou ao largo das correntes literárias di­tas de “van­guarda” de seu tempo e goza­va de grande popula­ri­dade. A única coisa que poderia expli­car isso é que o que já nasce moderno não enve­lhece nunca e con­tinua sendo atual e universal em qualquer época. Quanta coisa não foi pro­duzida em nome do moderno, em todos os campos e se tornou datada, precoce­mente en­ve­­lhecida? Assim, Homero, Shakes­peare, Cervantes, Goethe, Lewis Carol, e tantos outros, desafiam o tempo e per­manecem sempre atuais, mesmo so­frendo su­ces­­sivas adaptações e re­leituras.

Cidade Vampiro 
Paul Féval  

tradução de Bira Câmara, 2011

Brochura, formato14 X 21 cm., 164 págs.

PEDIDOS:

jornalivros@gmail.com



Nenhum comentário:

Postar um comentário