sexta-feira, 9 de abril de 2021

"Noites Lúgubres", texto precursor do Romantismo

José Cadalso (1741-1782) é um ilustre desconhecido do público leitor brasileiro;  no entanto, sua obra Noches Lúgubres, datada de 1774, influenciou o romantismo no Brasil e inspirou a chamada poesia sepulcral. Publicada pela primeira vez em 1789, gozou de fama extraordinária no século XIX, sobretudo nos anos do romantismo. 

(Texto de Bira Câmara)

Na opinião do crítico Bri­to Broca, Noites Lúgubres serviu de modelo para os contos ma­cabros de Álvares de Azevedo em Noite na Taverna

No Brasil, o texto ficou conhecido pela tradução de Francisco Bernardino Ribeiro, publica­da em folhetim na “Minerva Brasiliense”, em 1844, o que levou o crítico a supor que Álvares de Azevedo a teria lido.

Frontspício da edição de 1817 
Noches Lúgubres foi publi­cada pela primeira vez em 1789, e as primeiras seis edições são compostas de três noites, sendo a última inter­minada. Na edição de 1815 foi publicado o final da terceira noite, que é considerado apócrifo. Provavelmente, esta é a versão tradu­zi­da por Ber­nar­dino Ribeiro. 

O livro gozou de fama ex­tra­ordinária no século XIX, sobretudo nos anos do romantismo, e teve numerosas edições apesar da intervenção da censura e até uma passageira proibição inqui­sito­rial. Um processo foi iniciado pela Inquisição de Córdoba, por conter mui­­tas expressões escandalosas, perigosas e in­cen­­tivado­ras do suicídio, além de referências de­pre­ciativas aos padres, e ao ódio geral de todos os homens.

Noches Lúgubres é um texto curto, escrito na forma de diálogos, e tem como argumento a ob­sessão do personagem Tediato em desenterrar o cadáver de sua amada. Esse enredo macabro levou muitos leitores a se convencerem de que a narrativa é autobiográfica, e logo a lenda de um Ca­dalso desen­ter­rador do cadáver de sua amada espalhou-se.

Na verdade, o próprio autor não esconde que se inspirou na obra do poeta inglês Edward Young, Night Thoughts, publicada entre 1742 e 1745. O nome do personagem Lourenço, o coveiro de Noites Lúgubres, deriva de Young, que assim nomeia um amigo a quem também o poeta dirige suas reflexões.

O caráter escandaloso da obra deve-se à presença do macabro, nos detalhes mórbidos da exumação, com os vermes da sepultura cobrindo os pés de Tediato, ou a proposta a Lourenço de cavar um buraco bastante gran­de para assassinar nele seus filhos e suicidar-se ele também. A temática e o clima macabro, que remetem ao célebre monólogo de Ham­let, caíram no gosto dos poetas românticos brasileiros, que tinham em Sha­kespea­re, Byron e Hoff­mann seus modelos e grandes inspira­dores. No Brasil daquela época, os ecos de um acontecimento literário na Eu­ro­pa chegavam com o atraso de décadas e, como no ca­so da obra de Cadalso, até mais de meio século. 

Cadalso, um “filósofo ilus­­tra­do” escreveu uma obra que é pura irraciona­lidade, como um cien­tista ou uma mente obsessivamente lógica que sonha na noite e expurga suas verdades mais profundas, reprimidas pelo cérebro racional. Este apa­rente paradoxo é emble­mático do século XVIII, o século das Luzes, em que a razão coexistiu com as mais descabeladas crenças irracionais.

José Cadalso y Vásquez
(Cádiz, 1741-Gibraltar, 1782),
escritor espanhol, também
teve uma brilhante
carreira militar.
O personagem Tediato é também um ilumi­nis­ta, e desdenha dos temores supersticiosos de Lourenço, o coveiro, que vê fantasmas nas sombras projetadas pela lanterna. No entanto, a ra­cio­nalidade de Tediato cai por terra diante da mor­te da sua amada e uma ideia obsessiva se apo­dera de sua mente. Como Werther, diante do infortúnio sua paixão degenera em um sentimento doen­tio, patológico; para ambos a vida só faz sentido junto da mulher amada. Por coincidência, as Noites Lúgubres foram escritas em 1774, o mesmo ano em que Goethe publicou Os Sofrimentos de Werther, marco inicial do romantismo e que desencadeou uma onda de suicídios na Europa. As­sim como Goe­­the colocou um pouco de sua vida na obra (ele também viveu a expe­riên­cia de um amor não correspon­dido), é evidente que a nar­ra­tiva de Cadalso tem um cunho autobiográfico, pelo menos no que diz respeito ao lado psicológico. É possível que, depois da morte de sua amada, ao mer­gulhar num pro­fundo estado de desalento e desespero que bei­rou a loucura, só con­seguiu sair dele ao es­crever a sua obra. O fato de tê-la deixado inacabada é um indício desta hipótese; uma vez cumprida sua função catár­tica, não havia mais propósito em terminá-la.

Neste texto já existe, pois, o germe do espírito romântico, caracterizado pelo cultivo de um estado de alma mórbido e doentio, pela descrença e pessimismo de mãos dadas com o sentimentalismo exacerbado. Por isso Cadalso é considerado o primeiro autor romântico europeu.

Nascido nos es­tertores do século da razão, mais do que mero estilo literário, o Romantismo tornou-se uma fé e uma necessidade, e paradoxalmente o romântico jamais deixou de ser um cren­te que perdeu a Deus e a razão.


Noites Lúgubres
José Cadalso 

Brochura, 66 páginas, formato 13 X 19, 5 cm. 1ª edição brasileira em livro de "Noches Lúgubres", publicada originalmente em 1785. Tradução de F. Bernardino Ribeiro, atualização ortográfica, prefácio e nota biográfica do autor por Bira Câmara. 

Pedidos:

jornalivros@gmail.com


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