sexta-feira, 9 de abril de 2021

Hoffmann, um divisor de águas no gênero fantástico

Hoffmann conseguiu a proeza de revitalizar a narrativa fantástica, numa época em que o romance gótico tinha alcançado um estágio de saturação, com seus fantasmas e castelos assombrados. 

Texto de Bira Câmara

Se tivesse vivido em nossa época, Hoff­mann seria o que chamamos de multimídia; além de escritor genial e compositor, também foi desenhista talentoso e jurista. Entre suas atividades artísticas, além da pintura, da crítica musical e da drama­turgia, exerceu direção tea­tral, regência orquestral e cenografia. Como compositor, foi autor de música de câmara e outras peças. Crí­ti­co musical perspicaz, foi um dos primeiros a proclamar a genialidade de Beethoven.


Seu nome verdadeiro era Ernst Theodor Wilhem Hof­fmann, mas ele se tornou co­nhecido desde suas primeiras publicações como E. T. A. Hoffmann, pois adotou quando adulto o nome Amadeus devido a grande admiração por Mozart. Nasceu em 24 de janeiro de 1776 em Königsberg, na Prússia-Oriental, e morreu em 25 de junho de 1822 em Berlin, com apenas 46 anos de idade.

Na sua curta existência construiu substancial obra literária que o tornou um dos escritores mais co­nhe­cidos no mundo todo. Escreveu numerosos contos como: O Homem de Areia, As Mi­nas de Falun e vários romances, entre os quais se destacam O Gato Murr e Elixires do Diabo. Foi uma das mais ilustres figuras do ro­man­tismo alemão e inspirou numerosos artistas, na Europa e no resto do mundo. Jacques Offen­bach compôs a ópera fan­tástica em cinco atos Os Contos de Hoff­mann inspirando-se no universo do romântico alemão.

Entre suas obras mais conhecidas destacamos: Contos Noturnos (1817), Os Irmãos de São Serapião (1819-1820), O Pequeno Zacarias, chamado Cinábrio, Princesa Brambilla (1820), e também o conto O Quebra-Nozes e o Rei dos Camundongos, no qual foi baseado o balé Quebra-Nozes

Um crítico definiu Hoffmann como «um artista integral, cuja fome se alimenta de sonhos». Toda sua obra reflete uma estreita relação com a loucura e a alucinação, como podemos perceber no conto O Elixir do Diabo. Mas ao leitor desavisado devemos esclarecer que este trabalho de Hoffmann não tem nenhuma relação com o seu célebre romance (quase) homônimo Elixires do Diabo. Ambos são inéditos até agora em língua portuguesa, o que é injustificável, pois alguns de seus contos tiveram várias traduções tanto em Portugal como no Brasil no século XIX.

Hoffmann trabalhou durante dois anos no romance, que é uma de suas obras mais interessantes, e onde todos os grandes temas caros ao autor ali se encontram juntos e levados ao paroxismo: da angústia de viver à embriaguez romântica da volup­tuosidade, dos «aspectos noturnos da vida» ao desenvolvimento da personalidade, dos laços que unem a realidade e o sonho à tendência ao grotesco. 

Enquanto Elixires do Diabo é uma obra de tal magnitude que chamou a atenção do próprio Freud, o conto não pretende ir além de proporcionar uma leitura agradável, res­valando por completo no delírio alu­cinatório, numa atmosfera fantástica e surreal tão descabelada que pode ser tomado — numa leitura superficial — quase como um conto de fadas para adultos. Mas não podemos deixar de perceber neste texto uma sátira velada à socie­dade de seu tempo, e à própria natureza humana. As desventuras do estudante Ludwig, ao travar contato com as criaturas exóticas de mundos subterrâneos, podem muito bem simbolizar as dificuldades que o autor enfrentou no ambien­te provinciano em que vivia. Não é por acaso, pois, que nesta obra o único mundo governado sabiamente e onde tudo funcionava bem era justamente o dos animais!

Este conto — que apareceu no volume Contos Noturnos (1817) — ao contrário do romance, não está entre as produções mais elaboradas de Hoffmann, mas possui ao menos o mérito de ter influenciado dois autores célebres: Bulwer Lytton e Júlio Verne, pois ambos escreveram romances abordando mundos subterrâ­neos (Raça Futura e Viagem ao centro da Terra). Aliás, no livro de Lytton, o personagem central despenca nas profundezas da terra, da mesma forma que o estudante norueguês, depois que a corda arrebenta...

Há nas Mil e Uma Noites, este vasto depósito do imaginário, um conto insólito sobre um vampiro que sai das profundezas da terra à noite para roubar os tesouros de um califa. (*) Um de seus filhos recebe a missão de descer no poço de onde o monstro saía para o matar; e como aconteceu aos personagens de Hoffmann e de Lytton, a corda arrebenta, e ele descobre um novo mundo em baixo da terra. Coincidência? É provável que sim, mas não podemos descartar a hipótese de que Hoffmann tenha lido esta história e a recontado à sua moda. Outra coin­­cidência: enquanto o herói do conto das Mil e Uma Noites é um usuário de haxixe, o estudante noruegês de Hoffmann é chegado aos vapores do álcool. E as duas histórias têm um final semelhante.

Mas é bom parar por aqui, para não acabarmos dando um spoiler indesejado aos leitores dispostos a ler estas duas histórias.

NOTA:

(*) Les Aventures Extraordinaires d’un Fumeur de Kif («Contes Oubliés des Mille et Une Nuits», par Albert Caise,1893), cuja tradução publicamos na coletânea Histórias de Vampiros.

Made­moiselle de Scudéry

Crônica da época  de Louis XIV

Made­moiselle de Scudéry foi escrita e publicada em 1818 num almanaque literário. Obteve um sucesso imediato e, desde então, tem sido frequentemente reeditada até hoje, quase dois séculos depois. A segunda edição, em 1819, recebeu uma acolhida tão favorável, tanto por parte da crítica como do público, que permitiu a Hoffman tornar-se um autor popular e bem pago. Esta novela é considerada como uma das melhores do autor, não somente pela sua intriga plena de tensão dramática, por sua descrição da vida, dos lugares e pessoas da Paris do fim do século XVII, mas também pelos diferentes níveis de interpretação que ela permite.

A novela é uma obra prima de narração. Os de­ta­lhes dos costumes e o desenvolvimento dos ca­racteres acres­centa interesse dramático e concorre para a perfeição do cenário. Foi em uma pas­sagem das Crônicas de Nurem­berg, escritas em alemão por Wagenseil, que Hoffmann tirou a ideia desta novela, e é preciso destacar justamente que não é lá que se esperaria achar esta ane­dota francesa; mas o autor destas crônicas tinha co­n­hecido Mademoiselle de Scudéry em pessoa nu­ma viagem a Paris, e ouviu de sua própria boca os detalhes da aventura de Cardil­lac. 

Madeleine de Scudéry, que ficou conhecida como Mademoi­selle de Scudéry (1607-1701), foi uma escritora francesa, que também usou o pseudônimo Safo. Durante a última metade do século XVII tornou-se célebre como a primeira mulher literata da França e do mundo. Era presença habitual na Corte, antes de abrir o seu próprio salão literário, frequentado pela maioria das celebridades da época, como La Rochefou­cauld, Madame La Fayette, Sevigné, e outros que compareciam regularmente aos «sábados de Mme. de Scudéry», quando se conversava erudita e galantemente. Escreveu volumosas novelas galantes, uma delas em 10 vo­lu­mes (Arteméne ou le Grand Cyrus (1649-1653), a mais longa da literatura francesa.

Paris, em 1680, era teatro de assassinatos em sé­rie que aterrorizavam a cidade e a Corte. Os cadáveres descobertos ao amanhecer nas ruas tinham, como uma assinatura do diabo, o mesmo golpe de punhal no coração, cuja infalível precisão surpreen­dia os médicos. As vítimas, frequentemente abastadas e com títulos de nobreza, eram gol­peadas no instante de concluir suas mais íntimas transações. Cada nova morte revelava um segredo de amor. A pena de Hoffmann associa este relato inquietante a um pano de fundo histórico cujo interesse é notório, montando uma intriga policial palpitante e povoada de personagens históricos.



O Elixir do Diabo e Mademoiselle de Scudéry
E. T. A. Hoffmann

Brochura, 152 páginas, formato 12,5 X 20 cm., 2017. Tradução de Bira Câmara.

PEDIDOS:

jornalivros@gmail.com




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